Boletim Jurídico Nº 03 | Fevereiro de 2020

A obrigatoriedade do provedor de acesso à Internet guardar e fornecer dados relacionados à porta lógica de origem associada aos endereços IPs.

Comecemos pelo princípio.

O IP nada mais é que a abreviação de “Internet Protocol” e, basicamente, trata-se de uma numeração com a finalidade de identificar um dispositivo que está conectado a uma rede como a internet. Em outras linhas, o IP faz as vezes de um documento de identificação do dispositivo que está conectado à rede como, por exemplo, um simples “CPF”.

Essa possibilidade de identificação do dispositivo, entre outras finalidades, desempenha papel primordial para a localização da pessoa que o utilizou em determinado momento, máxime quando se está a investigar a ocorrência de ilícitos que, por alguma razão, a envolvam.

A problemática é que a criação de números IPs é limitada, o que lhes dá uma característica de finitude que, naturalmente, precisava ser superada em prol do melhor funcionamento da rede. Ou seja, assim como os números de telefone celular tiveram que acrescentar o número 9 (nove) ao seu início, os números IPs precisaram de adaptações que possibilitassem sua expansão.

Nesse contexto, saiba que a versão mais antiga da numeração de IPs, chamada de IPv4, praticamente acabou em virtude da revolução digital que testemunhamos e vivenciamos ao longo dos últimos tempos. Lembra da comparação com o CPF? É como se a combinação de números do CPF tivesse esgotado.

Por essa razão está sendo paulatinamente implantada em todo o mundo a nova versão da numeração IP, chamada de IPv6, que permite criar uma quantidade quase infindável de novos endereços numéricos.

Todavia, a implementação do IPv6 no Brasil avança em passos demasiadamente acanhados e não possui uma previsão confiável para sua finalização.

Diante desse impasse, não restou ao Comitê Gestor da Internet no Brasil outra solução que não fosse a de permitir o compartilhamento do mesmo número IP do IPv4 por mais de um usuário.  Ou seja, em determinada medida é como se mais de uma pessoa estivesse usando o mesmo CPF.

Essa solução paliativa, em que pese o lado negativo consistente na manifesta dificuldade em se individualizar e identificar os usuários da rede, foi essencial para que as pessoas pudessem continuar a utilizar regularmente a internet. Se assim não fosse, provavelmente, os brasileiros estariam até hoje sendo privados do acesso a rede, uma vez que não existiriam endereços numéricos suficientes para todos.

Feita essa breve – mas necessária – digressão, avancemos em direção ao verdadeiro objetivo desse texto.

Imaginem que um site hospedado em determinado provedor de conexão e aplicação de internet esteja cometendo atividades ilícitas contra uma grande empresa do mercado, por exemplo, cometendo phishing (golpe em que um site se passa por outro com a finalidade de captar ilicitamente dados de consumidores).

De que maneira então a empresa prejudicada poderia localizar a pessoa responsável pela criação do site criminoso se o IP utilizado por ela não é único?

Uma possível solução para esse problema é requerer judicialmente que os provedores de internet apresentem os dados de cadastro e registros eletrônicos que identifiquem o responsável pelo site, fornecendo, inclusive, a porta lógica de origem associada aos endereços IP.

E o que é uma Porta Lógica de Origem?

Em síntese, nada mais do que uma numeração que possibilita a identificação do usuário ainda que ele se encontre compartilhando IP com outras pessoas.

Nesse ponto é onde, até pouco tempo, residia uma controvérsia. Sucede que os provedores de conexão e aplicação de internet argumentavam que não existiria nenhuma regulamentação legal que determinasse a obrigatoriedade de se armazenar e, posteriormente, disponibilizar essa informação em juízo, amparados no fato de que o Marco Civil da Internet não fazia qualquer ressalva a esse suposto dever.

Essa controvérsia, contudo, foi levada então para a 3ª turma do STJ nos autos do REsp nº 1.777.769-SP de relatoria da Min. Nancy Andrighi, julgado em 05/11/2019. Seguem abaixo alguns excertos da ementa que bem resumiram o imbróglio:

6. Apenas com as informações dos provedores de conexão e de aplicação quanto à porta lógica de origem é possível resolver a questão da identidade de usuários na internet, que estejam utilizam um compartilhamento da versão 4 do IP.

7. O Marco Civil da Internet dispõe sobre a guarda e fornecimento de dados de conexão e de acesso à aplicação em observância aos direitos de intimidade e privacidade.

8. Pelo cotejamento dos diversos dispositivos do Marco Civil da Internet mencionados acima, em especial o art. 10, caput e § 1º, percebe-se que é inegável a existência do dever de guarda e fornecimento das informações relacionadas à porta lógica de origem.

9. Apenas com a porta lógica de origem é possível fazer restabelecer a univocidade dos números IP na internet e, assim, é dado essencial para o correto funcionamento da rede e de seus agentes operando sobre ela. Portanto, sua guarda é fundamental para a preservação de possíveis interesses legítimos a serem protegidos em lides judiciais ou em investigações criminais.

E no mesmo caminho seguiu o julgamento do REsp nº 1.784.156-SP, de relatoria do Min. Marco Aurélio Bellizze, que reconheceu “ser obrigação legal imposta também aos provedores de aplicações de internet, enquanto não concluída no país a implementação da tecnologia IPv6, o apontamento da porta lógica de origem eventualmente associada a endereço IPv4 para fins de identificação de terceiros usuários de seus serviços que, eventualmente, os tenham utilizado para a prática de atos ilícitos.”

Logo, atualmente podemos dizer com alguma segurança que a jurisprudência do STJ se estabilizou no sentido de que os provedores de aplicações de internet possuem sim a obrigação de armazenar, para fins de eventual necessidade de identificação dos terceiros usuários de seus serviços, informações relativas às portas lógicas de origem eventualmente associadas aos IPs a eles atribuídos.

E ai? Gostou?

Conta para a gente o que você achou e se já leu os dois julgados acima mencionados!

A gente se encontra novamente a qualquer momento.

Ataíde Nunes
Advogado do Urbano Vitalino Advogados.